Nostalgia da Senzala

Fernando Grostein Andrade

Porque me dá indignação quando um grupo de ex-alunos do Santa Cruz decide “matar a saudade do senzala”.

Meus avós escaparam do Holocausto, fugindo da Polônia e Rússia, rumo a América latina. A parte da família que ficou na Europa foi assassinada por nazistas.  Minha religiosidade e espiritualidade ainda são páginas a serem escritas na minha vida, mas não tenho dúvidas, sou judeu, com muito orgulho. Holocausto, foi durante séculos, a palavra usada para designar grandes massacres.  Desde 1960, se tornou um termo que remete diretamente ao genocídio dos judeus, quando mais seis de milhões de pessoas foram assassinadas pelos nazistas. Mas este não foi o único holocausto: mais de cinco milhões de negros foram forçados a uma diáspora durante o período da escravidão no Brasil, segundo o historiador Laurentino Gomes. Também é importante lembrar dos povos indígenas que foram massacradas pelos colonizadores europeus – e continuam sofrendo até hoje.

Não consigo entender, portanto, quando leio nos grupos do WhatsApp que um grupo de alunos da escola onde estudei decide matar a saudades do “Bar Senzala” que está fechando uma das suas unidades. Explico para quem não sabe o contexto. O Santa Cruz é um grande colégio paulista, por lá estudaram de Chico Buarque a grandes empresários do setor financeiro. A escola sempre cultivou um enorme clima de tolerância e diversidade. Algumas quadras da escola existe um bar e um restaurante chamados “Senzala”.  Exatamente a palavra que significa cativeiro e é usada no Brasil por pessoas não negras sem pudor. É uma palavra sem peso algum para muitos de nós brancos . É claro, não é dor e nem a história dos brancos.  Não existe uma discussão sobre o que palavras como senzala, pelourinho, criado-mudo significam para os milhares de descendentes de escravizados. Não há respeito pela dor dos negros no Brasil.

Muitas pessoas não percebem a gravidade disso e escrevo este texto para conscientizar. Não é honesto e nem “kosher” normalizar atrocidades e tentar tirar significado do abominável.

Muitos vão falar, horas, mas eles não são racistas, estão apenas com saudades do bar onde passaram a adolescência. E é por isso que não surpreende que estudantes de uma das melhores escolas do país, sequer pensem no peso de uma palavra que remete a dor de um sistema tão cruel e doloroso. Observar pessoas falando sobre como não são racistas e que “apenas tem saudades de um lugar com um nome qualquer onde passaram a adolescência” é lamentável.

Desmund Tutu, o bispo africano vencedor do Nobel da paz pelo combate ao Apartheaid tem uma frase célebre “se você fica neutro em situações de injustiça, você escolher o lado do opressor”.  A alta sociedade paulista faz vista grossa ao período de mais de 350 anos que marca o Brasil como o mais longevo sistema de escravidão da história recente da humanidade. Aliás, o Brasil é o último país a abolir esse sistema nefasto.

Morando há quase um ano nos EUA, percebo o quão maluca é a nossa relação brasileira com os empregados domésticos. Aqui nos EUA, quase ninguém tem empregada. Pessoas de classe média baixa e alta lavam sua louça, lavam sua roupa, cozinham, trabalham e se divertem sem problemas. Aqui uma empregada custa 500 reais por dia para trabalhar por quatro horas e não faz coisas que seriam normais no brasil, como lavar janelas: “I don’t do windows (eu não lavo janelas)”.  Recentemente acompanhamos algumas reportagens sobre como algumas construtoras estão re-introduzindo os quartos de empregada em Portugal para atender os clientes brasileiros. Parece Downton Abbey.  O Brasil ainda continua com costumes arcaicos. E agora estamos importando a moda de volta para o continente europeu. O tal quarto de empregada, geralmente um cubículo desumano, é uma forma de manter um regime de trabalho de quase 24 horas – algo que é como uma escravidão moderna.

Não sou hipócrita: sempre tive uma empregada doméstica e ainda sempre desenvolvi uma relação altamente afetiva de gratidão. Por mais que eu entenda a importância e reconheça que essas pessoas foram fundamentais para fazer meu trabalho de forma mais eficiente, existem questões.  Muitos dos brancos se negam a reconhecer o que é obvio ao olhar de qualquer estrangeiro que pisa neste país.  Somos divididos por classe e essa categorização é um resquício direto do período em que dividíamos pessoas por raça. Ou seja, os negros estão entre os mais pobres e sofrem mais violência neste sistema desigual. Basta dar uma volta na penitenciária. Faz parte da nossa evolução reconhecer privilégios. Não estou aqui falando mal da classe média brasileira, da qual faço parte. Estou criticando os diversos níveis de complacência com as tragédias que os negros e índios sofreram.

Hoje é dia mundial do Holocausto. Infelizmente assistimos o anti-semitismo crescer no mundo, assim como o preconceito contra muçulmanos e até mesmo povos indígenas (recentemente foram chamados de menos civilizados pelo ocupante do mais alto cargo de nossa república).

Por outro lado, nós, judeus, nos estabelecemos com elite de quase todos os países onde temos uma população expressiva. As pessoas têm respeito pela nossa história, poucos ousam brincar com a nossa dor. No final do sistema de opressão nazista que matou milhares dos nossos, recebemos bilhões em indenização, a ONU reconheceu o direito dos judeus de serem um povo livre e ajudou a criar um país democrático que hoje é uma ilha de riqueza no meio de uma região conturbada. Os judeus hoje tem um país, uma potência atômica com um dos exércitos mais poderosos do mundo – incluindo o cibernético. Já os negros, lutam pela ascensão social em um continente que foi desenhado para que eles trabalhassem forçadamente. No final do holocausto deles, não houve pedido de desculpas, não houve reparação e pelo que vimos no bar senzala, não houve nem empatia. Foram anos e anos de discriminação e contínua exclusão do sistema. É gritante a diferença entre o tratamento das duas histórias de dois povos que foram massacrados.

Os  judeus americanos apoiaram associações negras no final do século XIX como a NAACP – maior organização negra do país. O documentário “Blue Note Records: Beyond the Notes” conta como os judeus Alfred Lion e Francis Wolff foram importantes aliados na popularização do Jazz e na luta contra a estigmatização do gênero musical visto até então como música degenerada pelo regime nazista. Judeus estavam na Marcha de Washington junto a Martin Luther King nos anos 60. E Albert Einstein também se manifestou contra o racismo nos Estados Unidos que o acolheu como refugiado: “Há uma separação entre pessoas de cor (negras) e pessoas brancas nos Estados Unidos. Essa separação não é uma doença de pessoas de cor (negras). É uma doença das pessoas brancas. Não pretendo ficar calado sobre isso”.

Nós brancos temos muito a aprender com os negros. Quando terminei este texto, liguei para meu amigo Ad Junior, um empresário e ativista do movimento negro e falei:  você poderia me dar uma consultoria? Não quero escrever bobagem. Ad, rescreveu este texto. Acrescentou. Me ensinou. Me fez crescer. Acho que isso deve valer para os brancos. Não devemos ter compromisso com o erro, devemos crescer.

Ser judeu para mim é ser contra qualquer holocausto, contra qualquer grupo. Portanto, como judeu, digo. Fechem o Senzala. Tomem vergonha na cara. Abram os olhos. Infelizmente errar (e errar feio) faz parte da natureza humana. Eu sou uma pessoa construída em cima de erros. Mas nunca tive vergonha de me desculpar e seguir em frente. Este texto não é para agredir, este texto é um pedido: abram os olhos e cresçam. E fica a pergunta: Se o vídeo abjeto de Roberto Alvim que é claramente inspirado na ideologia dos algozes do povo judeu fosse feito para agredir e falar mal dos negros ele teria ele sido demitido? Eu tenho certeza que não. Fechem o Senzala, destruam a senzala, ou, ao menos, troquem o nome do bar.

 

 

 

 

 

Erramos: o texto foi alterado

O Brasil foi o último pais a abolir a escravidão nas Américas e não no mundo. No mundo, muitos consideram a Mauritânia. Contudo, muitos ativistas Negros discordam desta visão, dado ao peso da participação do Brasil no modelo escravocrata colonialista versus a relevância da Mauritânia.